8 de junho de 2022

O Uso Justo de memes e o cabimento de strikes no Youtube

Por Bruno de Lima Acioli

Algo que certamente preocupa todas as pessoas que detém canal no Youtube são as “diretrizes de comunidade” da plataforma, especialmente no que diz respeito ao uso de conteúdo de copyright (direito autoral) de terceiros, o que pode render ao canal que viola estas diretrizes punições na forma de strikes

As punições do Youtube por meio dos strikes variam de acordo com a gravidade da infração cometida, podendo levar ao encerramento compulsório da conta (canal).

Ocorre que o uso de trechos de obras de direito autoral de terceiros é algo permitido nas plataformas de Internet, sobretudo por influência do Direito Americano, sob a manta do Fair Use (Uso Justo).

Utilizar trechos de filmes ou de música para fins de crítica são claros exemplos de Uso Justo, permitindo-se, inclusive, que o canal do Youtube monetize estes vídeos.

Outros usos de trabalhos intelectuais protegidos pelo direito autoral, contudo, adentram uma zona cinzenta das próprias diretrizes da plataforma, que acaba por oferecer apenas parâmetros não muito claros para o Uso Justo no Youtube.

Neste sentido, perguntamos: e quanto ao uso de trechos de filmes, séries ou de músicas em vídeos de Youtube, enquanto memes? Qual o limite? Primeiro, é necessário compreender o que são os memes.

Os “memes de Internet”, ou simplesmente “memes” são um conceito e fenômeno típico da Internet de meados da década de 2000, o que coincide com o período de transição da web 1.0 para a chamada web 2.0, ou “web participativa”, na qual os usuários da rede ganharam um papel mais ativo na formação de conteúdo para as redes, anteriormente dominadas por plataformas centralizadoras de informação (ex: AOL, Yahoo, etc.).

Uma gigantesca parte dos memes criados neste período compreendido entre meados dos anos 2000 até data recente vieram da comunidade anárquica do website de quadro de imagens 4chan, na qual, a título de referência, também se originou o famoso movimento hacktivista “Anonymous”.

Neste período inicial, os memes poderiam ser compreendidos como uma série viral de templates retirados de ilustrações em quadrinhos, cenas de filmes ou de séries, e de imagens “photoshopadas”, e então customizados e utilizados para fins de humor, de reação ou de crítica.

A partir do template vazio do meme, é possível que diversos usuários possam criar suas próprias variações em cima do “meme original”, replicando, assim, em efeito mimético, a base conceitual da imagem para outras formas e usos semelhantes enquadrados em seu contexto inicial. Vejamos o seguinte modelo, de uma cena da série americana de comédia “The Office” (2005-2013), do personagem do ator Steve Carell interagindo com seu chefe:

À esquerda, a imagem template vazia, retirada diretamente de cena da série; à direita, o template preenchido e assumindo a forma criativa de meme.

Claro, nem todo meme se utiliza de imagens famosas sobre as quais recaem, inevitavelmente, direitos autorais, tal como no caso acima, referente à bem sucedida série de comédia da empresa americana de telecomunicações NBC, a qual, em regra, enquanto detentora dos direitos autorais sobre a obra, pode utilizar dos mecanismos legais para fazer cessar imediatamente o uso não autorizado de seus trechos ou imagens. 

Noutra banda, alguns memes, tais como a série de figuras nomeadas de “rage faces”, extremamente populares na Internet entre o final da década de 2000 e início da década de 2010, não tem um criador ou detentor conhecido. É o exemplo do rage guy (imagem à esquerda).

O desconhecimento sobre a autoria de tais desenhos, e a facilidade de utilização em diversos contextos, nas chamadas “rage comics’, permitiu que o seu uso tenha se difundido de forma muito significativa em blogs, sites, redes sociais e páginas de humor. Apesar disso, alguns destes desenhos de “carinhas”, tal como a “trollface”, tiveram seus direitos autorais reclamados por seus criadores, os quais conseguiram reverter o uso não autorizado de seus desenhos em indenizações de direitos de uso.

No Brasil, um dos memes de maior destaque da época, o qual, desta vez, envolve imagem, vídeo e som, foi o vídeo de “Para Nossa Alegria”, que ganhou muitas visualizações no Youtube e na televisão através de programas como Pânico na TV.

Neste ponto, entramos em uma característica singular de alguns memes: muitas vezes, envolvem situações cotidianas de pessoas comuns que são compartilhadas (ou mesmo vazadas) na internet, e que geram uma fama inesperada para estas pessoas.

Por claro, convém não mais tratar o meme nestes casos pelas lentes (apenas) do direito autoral, mas também dos direitos da personalidade da pessoa exposta, especialmente no que diz respeito ao direito à imagem.

De um modo ou de outro, e pelo o que foi explanado até então, é possível chegarmos a certas conclusões; primeiramente, no que diz respeito ao formato do meme, este pode envolver:

  1. imagens;
  2. vídeos;
  3. áudios;
  4. combinações de imagens, vídeos e/ou áudios.

Por sua vez, no que diz respeito à natureza jurídica, enquanto o meme está mais estritamente ligado aos direitos autorais, especialmente quando se usa imagens, vídeos ou sons de filmes, seriados, músicas, e outros produtos de entretenimento, é possível, também que os memes atinjam diretamente o direito à imagem dos envolvidos.

O já anteriormente mencionado “Fair Use” (Uso Justo), embora não esteja presente, ao menos não de forma expressa, na legislação brasileira sobre direitos autorais (Lei nº 9.610/98), tem sido importado do direito americano para a doutrina e a jurisprudência de nossa pátria, obviamente, com suas adaptações ao direito nacional.

No que diz respeito à legislação, o artigo 46 da Lei de Direitos Autorais estipula as hipóteses de uso sem permissão, porém aceitável, de obra alheia protegida por direitos autorais, estipulando como justas ou aceitáveis:

– a reprodução na imprensa para fins de divulgação noticiosa;

– a reprodução, em um só exemplar e em pequenos trechos, para uso privado do copista, e sem interesse econômico envolvido;

– a citação em livros, revistas, notícias, televisão, etc, indicando o nome do autor e o título da obra;

– o uso ou reprodução em estabelecimentos comerciais para fins de divulgação e venda da obra protegida pelo direito autoral (ex: exibir o DVD de um filme para fins de venda);

– a representação teatral e a execução musical, quando realizadas no recesso familiar ou, para fins exclusivamente didáticos, nos estabelecimentos de ensino, não havendo em qualquer caso intuito de lucro.

Outra possibilidade de Uso Justo de obra protegida por direito autoral reside na paráfrase ou paródia (art. 47), embora a lei condiciona esta ao não “descrédito da obra”.

Em síntese, o rol previsto na Lei de Direito Autoral de hipóteses de Uso Justo de obra protegida por direito autoral sem permissão de seu autor, abarca situações restritas e, de fato, nunca foi adequado às novas plataformas digitais.

Deste modo, o texto da Lei de Direito Autoral não nos ajuda a estabelecer definições legítimas para o uso de conteúdo caracterizado como meme, e apenas pode nos oferecer respostas mais contundentes se o rol do art. 47 do referido texto legal for compreendido como um rol exemplificativo.

Se, por um lado, a doutrina jurídica brasileira mais contemporânea tem seguido interpretação extensiva para entender que o rol do art. 47, Lei de Direito Autoral, deve ser considerado apenas como interpretativo, a jurisprudência nacional, por outro lado, não tem um acervo significativo de julgados para formular uma posição extensiva ou dissonante da lei.

O ponto positivo a ser destacado neste parecer é que, no que diz respeito à Internet, em virtude da prevalência das leis e dos fundamentos legais de origem americana acerca do copyright (direito autoral) no ambiente digital, as plataformas tais como o Youtube, assim como as redes sociais, tendem a ter uma interpretação benevolente  sobre o uso não autorizado de conteúdo de propriedade intelectual de terceiro, desde que sem fins lucrativos, geralmente enquadrando-lhe dentro do conceito de “Uso Justo”.

O Youtube mantém em seus canais de ajuda uma série de informações sobre o fair use (Uso Justo) e como a plataforma atua em relação a este uso. 

Em países como os Estados Unidos, nação de origem do Youtube e principal influência doutrinária no Brasil acerca das questões relacionadas ao “Uso Justo”, a utilização de trechos de obras de terceiros protegidas por direitos autorais é geralmente considerada legítima quando se dá para fins de comentário, análise, pesquisa, ensino ou reportagem.

Mesmo o uso não autorizado de caráter principalmente ou puramente comercial pode ser considerado aceitável pela plataforma Youtube. Para tanto, deve-se verificar se o vídeo apenas copia o material original, ou se o vídeo cria uma nova expressão ou significado ao material original. Se for meramente uma cópia, há infração a direitos autorais, e o vídeo será excluído da plataforma, sem prejuízo das eventuais sanções cíveis ou criminais cabíveis.

De acordo com as políticas do Youtube, baseadas no entendimento de especialistas americanos, a utilização não autorizada de material de obras com foco em fatos reais e de interesse noticioso tem maiores chances de ser considerada como Uso Justo do que a utilização de obras ficcionais, como filmes e séries, por exemplo.

Outro critério avaliativo relevante para configuração do Uso Justo é a verificação de que o uso de material protegido por direito autoral não causou qualquer prejuízo ao lucro do detentor do conteúdo original. Dito isto, a reprodução parcial ou integral de filmes ou séries não é visto como Uso Justo, ainda que o proprietário do canal no Youtube não monetize em cima das visualizações de seus vídeos. 

No contexto que mais interessa ao presente parecer, no que toca ao entendimento do Youtube sobre o Uso Justo, a utilização de pequenos trechos de obras protegidas por direito autoral tende a se enquadrar dentro do critério do “fair use”. Este tipo de incursão de poucos segundos de algum conteúdo protegido por direitos autorais, normalmente chamado de “insert” em vídeo, tem baixo ou baixíssimo potencial de causar problemas ao proprietário do canal.

Pelas razões acima expostas, material que utiliza de inserts de poucos segundos, utilizando de memes para intercalar momentos ou fases dentro do vídeo, especialmente para a finalidade de simulação da reação (react images ou react videos) que se deseja transmitir ao espectador, normalmente não sofrem strike, mesmo quando o canal monetiza seus vídeos.

Contudo, os detentores de canais do Youtube devem ficar cientes e atentos que os algoritmos da plataforma, e sua sofisticada plataforma de CONTENT ID, que monitoram a violação de direitos autorais na plataforma, são bastante sujeitos a falhas e tomam decisões muitas vezes questionáveis.

Ora, já aconteceu mais de uma vez, seja no Youtube ou no Twitch, de o próprio detentor do conteúdo autoral sofrer strike nas referidas plataformas.

Ademais, conhecer o modus operandi da proprietária do conteúdo autoral do qual os memes são originados, também é uma atividade importante antes de se decidir pelo seu uso ou não.

Grandes corporações do entretenimento, tais como a Warner, costumam ser bastante atuantes em relação às violações de seus direitos autorais, por vezes cometendo strikes mesmo em vídeos com caráter de comentário ou de crítica, os quais estariam resguardados pelo instituto do Uso Justo. Empresas ainda mais tradicionais, como a japonesa Nintendo, tem um histórico passado e recente de baixa tolerância ao uso não autorizado de suas criações.

O uso de memes que representam elementos da cultura pop, do cinema, das artes, dos quadrinhos, da televisão, entre outras manifestações tipicamente do entretenimento,  podem resultar, em casos de menor probabilidade, em strikes, mas, para além do prejuízo na monetização ou perda de alcance do canal, dificilmente repercutirão em esferas judiciais.

 Na maioria dos casos que envolvem o uso não autorizado de material protegido pelos detentores do direito autoral, o proprietário do conteúdo dá strike no vídeo, e o próprio Youtube o retira do ar, pela aplicação de notice and takedown (notificação e retirada).

Assim, embora exista a zona cinzenta mencionada no início deste artigo, e a atuação por vezes desproporcional dos algoritmos do Youtube, o uso de memes para a comunicação com o público do canal não deve ser desaconselhado ou repreendido, devendo sempre ser analisado no contexto em que o canal se propõe utilizá-los e, sempre, adotando as cautelas necessárias, para que se evitem dores de cabeça futuras.